Seguidores da umbanda e do candomblé são vítimas de
preconceito, sobretudo dos evangélicos, e a Justiça e a polícia não estão
preparadas para lidar com o crime
Terreiro em São Gonçalo (RJ): um dos 847 mapeados somente na região metropolitana da capital |
Uma característica atribuída ao povo brasileiro é a
tolerância religiosa. O caldeirão de culturas que formou o País teria
propiciado a convivência harmônica entre os diferentes credos, ao contrário de
outras nações onde violentas disputas derramam sangue inocente. Na prática,
porém, a realidade é outra. Seguidores das religiões afro-brasileiras sempre
conviveram com a desconfiança alheia. Nos últimos tempos, há indícios de que a
situação se agravou. Somente no Rio de Janeiro, são contabilizados, por ano,
quase 100 casos de agressões morais ou físicas envolvendo intolerância
religiosa em relação aos praticantes de umbanda e candomblé. “Em sua maioria
esmagadora, os ofensores são membros das igrejas neopentecostais”, afirmou à
ISTOÉ Henrique Pêssoa, delegado da 4a DP, no centro da cidade, que há três anos
recebeu uma designação especial e pioneira no Brasil para cuidar de casos que
envolvem crimes de viés religioso.
“Cada neopentecostal tem a missão de ganhar adeptos, é uma
obrigação religiosa, daí o proselitismo. A missão é clara: divulgar e
converter”, explica a antropóloga da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro Sonia Giacomini, que pesquisa o tema há 20 anos. Ela diz que o intuito
de arrebanhar mais e mais fiéis é bastante organizado. “Existe uma certa
logística. Por exemplo, uma igreja é instalada onde havia um cinema pornô, pois
ali seria uma área especial para fazer uma conversão, cheia de pessoas
vulneráveis”, apontou.
Chamada de “macumbeira safada”, Elisângela Queiroz não conseguiu registrar a ocorrência numa delegacia |
O problema é que a busca por fiéis transforma-se, às vezes,
em perseguição. Na Ilha do Governador, na zona norte, há denúncias na 4ª DP de
representantes de religiões afrobrasileiras contando que terreiros (os locais
onde são realizadas as cerimônias de umbanda e candomblé) estavam sendo
destruídos e seus líderes escorraçados da Ilha por traficantes evangélicos
neopentecostais. “Ali, criamos a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa
(CCIR) porque era extremamente necessário”, diz Ivanir dos Santos, membro da
comissão. Este e outros 39 casos em todo o País foram denunciados em um
relatório produzido pelo grupo que reúne 12 religiões e entregue ao presidente
do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, Martin I.
Uhomoibai.
Entre as denúncias, está a da Associação da Resistência
Cultural Afro-Brasileira Jacutá de Iansã, que não conseguiu abrir
conta-corrente na agência Abílio Machado da Caixa Econômica Federal, em Belo
Horizonte (MG). Os diretores contam que esperaram quatro meses para receber a
seguinte resposta: o banco é livre para abrir conta de quem quiser, e não
queria a associação como correntista. Em São Paulo, a Associação Beneficente de
Oyá e Ogun acusa a prefeitura de discriminação por ter lacrado sua sede no
bairro de Santa Mariana, sob a alegação de desrespeitar o zoneamento. Segundo
eles, o desrespeito se deve unicamente ao fato de eles estarem no local. Até na
considerada sincrética Salvador (BA), a prefeitura foi denunciada por ter
destruído parcialmente o terreiro Oyá Onipo Neto no bairro de Imbuí. No
processo, diz que o terreiro era vizinho à propriedade de um funcionário da
prefeitura que não gostava da proximidade com o templo. Os três casos ocorreram
em 2008 e ainda estão sendo investigados.
No Rio, um dos terreiros mais antigos do País, de 1908, foi
derrubado recentemente. Funcionava no município de São Gonçalo, não muito longe
da capital, em uma pequenina casa, que foi posta abaixo para a construção de um
galpão. A iniciativa da demolição foi do dono do imóvel, o militar Wanderley da
Silva, 65 anos, que desconhecia a importância do endereço. O problema, segundo
lideranças religiosas regionais, não foi o ato dele e, sim, o da prefeita de
São Gonçalo, Maria Aparecida Panisset (PDT), que teria ignorado os pedidos de
umbandistas para salvar o local tombando-o. A prefeitura expediu uma nota
dizendo que nada poderia fazer porque a casa era particular. Mas outro caso
envolvendo a prefeita Maria Aparecida, que é frequentadora da Primeira Igreja
Batista Renovada, provoca dúvidas entre os religiosos.
Cristiano Ramos, diante do Centro Espírita Caboclo Pena de Ouro, no Rio de Janeiro, que pode ser desapropriado |
Maria Aparecida estaria forçando a desapropriação de um
local onde funciona outro histórico terreiro, o Centro Espírita Caboclo Pena de
Ouro. O presidente da Casa, Cristiano Ramos, diz que a explicação oficial é a
construção de um Complexo Poliesportivo no local – embora haja um centro
esportivo com características semelhantes na região. O caso virou, em abril,
uma disputa judicial. “Tentei negociar várias vezes, mas ninguém quis me
ouvir”, diz Ramos, que alega não ter recebido informações sobre indenização até
agora. Procurada por IISTOÉ, a prefeitura não deu retorno.
Muitas iniciativas para combater a perseguição ainda
dependem de apoio governamental. Por exemplo, o tombamento de templos – que são
pedidos e não são atendidos pelas prefeituras –, a morosidade na apuração de
denúncias de perseguição e a falta de providências contra policiais que se
recusam a investigar casos de intolerância. Para o delegado Henrique Pêssoa,
saber a abrangência exata desse tipo de crime, que tem pena de um a três anos
de reclusão e multa, é quase impossível. Os registros raramente são feitos de
maneira correta e, além disso, a lei não costuma ser cumprida. A bancária
Elisângela Queiroz descobriu isso na prática. Chamada de “macumbeira safada”
por um colega de trabalho, ela procurou uma delegacia, mas recusaram o registro
da ocorrência. “Chegaram a me dizer que era apenas uma briguinha”, contou ela.
Pesquisa recente da Fundação Getulio Vargas aponta que 0,35%
da população declarou ser praticante de religiões afro-brasileiras. O teólogo
Jayro de Jesus acredita que é muito mais e até estima um crescimento de quase
70% no número de terreiros nos últimos 30 anos. “Acho que as pessoas estão
sendo segregadas e, por isso, não tiveram a altivez de se autodeclarar nos
censos”, afirma. Ele faz parte do grupo que está discutindo o mapeamento dos
terreiros existentes no Brasil, com apoio da Secretaria de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial. A expectativa é de que os trabalhos comecem no
início do próximo ano e durem até 2013. Em um levantamento feito em 2011, foram
localizados até agora, somente na região metropolitana do Rio, 847 terreiros.
Com os dados obtidos, o próximo passo será a implementação de um Plano Nacional
de Proteção Religiosa. Para impedir a propagação de conflitos movidos pela
religião, é preciso agir rápido.
Por: Juliana Dal Piva e Michel Alecrim, IstoÉ